Rosa Oliveira
essa imensa circulação
essa imensa circulação
(luís miguel)
Vou ler um texto que provavelmente não vou ler. Leio e não leio. Hesito. Leio e paro. Paro e recomeço. Acentuo e pontuo. Paro e sacudo. Hesito.
Escrever e falar é hesitar constantemente. Dar voz à hesitação é parar a vida para dar passagem ao pensamento. Um rio a correr no mesmo sítio de onde não sai. Um gargarejo. Um poço onde chapinhamos e olhamos para os pés. Um charco onde os pés se esquecem do corpo.
Por hesitar, escrevi tarde. Todos acentuam a chegada tardia.
Tardio, título do livro que se aproxima. Se ainda for a tempo, tal a ameaça lançada. Luto contra o tempo. Não lutamos sempre? Quem dá a quem? Quem pode brandir o dedo? Chegarei tarde e a boas horas, quebradiço lugar comum. Durante muito tempo fui para a cama tarde. Ficava entretida na sericultura. Chegar tarde à escrita parece ser grave, chegar tarde à vida não é nomeado. O inominável. Equivaler escrita e vida é o nó do enforcado. Não é metonímia. Não há figuras de estilo para o atraso. Só relógios, calendários, admoestações.
Tardio é tardio e ainda mais tardio.
Escrevo livros com uma só palavra. Livros apócrifos. Livros cheios de larvas, buracos na pele, hesitações e saltos.
Ainda não comecei a ler apesar de estar a ler.
Hesitar — palavra latina para o acto de estar perplexo.
Não, na verdade estou à espera de Samuel.