Luís Filipe Castro Mendes
POETA AOS SETENTA ANOS
POETA AOS SETENTA ANOS
Um gesto a que assomasse algum amor
ou um olhar solidário de velho camarada:
nem eles poderiam já infectar de vida insolente
o deserto dos dias que se movem por detrás das altas janelas
ou por dentro dos subterrâneos.
Ninguém mais vem para a varanda cantar teimosamente
o que dói nas nossas vozes e dorme nas nossas veias.
Os sinos continuam a tocar nos dias escuros e claros
sobre ruas desertas ou só atravessadas a medo, porta a porta,
vida a esconder-se de viver.
Pela noite alguém escreve, mas sabe que não escreve para si
nem para os leitores que perdeu noutras idades.
Que um rosto assome à janela, que um verso se perca na rua,
que o nosso orgulho de viver possa durar para além das nossas vidas.