Marcos Siscar
ÖTZI
Um homem feriu três outros antes de morrer. Também feriu-se o companheiro, segundo a análise do sangue no manto de palha. Foi há 5300 anos, nos Alpes austro-italianos. Supondo que o olhássemos nos olhos, ao seu corpo preservado pelo gelo, como saberíamos se sonhava com inimigos? Ou se queria voltar para casa? Se o mundo para ele era um campo ensolarado sobre o qual o olhar se funde? Se a mosca o incomodava, se no inverno o vapor do cuspe o desarmava? Como saberíamos, supondo que lhe examinássemos a ferida, que alvo almejava o olhar que fugia, ou se a fúria do olhar escapava, quando a flecha finalmente o trouxe pelas costas ao chão e o abateu? Abater. O nojo me leva ao dicionário. Matar, assolar. Levar ao solo. O dicionário me leva ao chão. Deito-me no tapete da sala para ver melhor. No jornal, a colheita diária da morte. Penso nas infindáveis semelhanças entre as palavras justapostas e as vidas apagadas que se achatam enquanto tombam infindavelmente rumo ao chão. Talvez algumas se levantassem, tendo força de presente, e invertessem por curto instante a direção daquilo que, em nosso olhar, divertido, observa.