Margarida Ferra
Lugar reservado
Mesmo que durante o comboio
passe em revista o coração,
subo a plataforma inclinada
e se olho é nunca
em frente, nunca para baixo.
O meu lugar está reservado
e sei há muito: um pé
verdadeiro não é nosso,
serve apenas à dor, se for preciso
lembrarmo-nos de que a existência.
O melhor pé que temos é cada passo:
sabe sempre o caminho,
o degrau seguro, invisível e escuro,
transparente, sujo por todos os outros,
nunca fomos nós.
Valido o meu bilhete e amores antigos,
tenho dúvidas diárias, sono e a música
que ainda cabe.
Espreito sem medo ou lentes
a revista dos outros passageiros,
jornais gratuitos,
histórias de pessoas sem pés,
sapatos duplos, meias de vidro,
uma mulher sofre de silêncio
porque lhe mudei a partícula,
silenciosa e agora quase poética,
nunca a vi antes desta paragem.
Revolvo os meus papéis e
a escola secundária passa demasiado
depressa por mim, outra vez
todos os dias úteis. Desfocada
se a marcha é normal;
nitidamente outra,
se alguém na linha
impede o curso de alguma coisa:
as nossas vidas, aquelas
a que estamos ligados
por outras linhas, estes quilómetros
ou mais, os anos que passaram
(e quantos minutos eram)
todas as bebidas
que podíamos legalmente comprar
no bar à saída do liceu.
(Sim, uma taberna: nunca lá entrei.)
Podia ter trazido outra na minha vez,
o meu bilhete é válido e também
as minhas dores sem culpa.
Sou por defeito ainda capaz de me indignar
com todas as coisas impossíveis.
Não sabia antes
de frequentar esta estação
que havia de ver ao longe
os carris negados aos meus pés,
os dois,
a doerem-me agora
sei que existem
e eu sobre eles.
Vou descalçar-me antes do fim,
faltam-me dois versos e não disse
tenho uma vida limpa e por isso
os meus joelhos não podem
dobrar-se à distância,
nunca foram até lá.