Kalaf Epalanga
Desde que o Algarve é Algarve
Desde que o Algarve é Algarve
Invade-me um silêncio
Que quase roça o incómodo
Sempre que vejo a arte
Como pretexto para reflexões
Sobre a comunidade afro-tuga1
Num contexto contemporâneo
Acredito que hoje
O papel de um professor
Numa sociedade urbana
É mais importante que o de um músico
Assim como a imagem de uma família
Reunida à hora do jantar
Em bairros como damaia ou cova da moura
Tem mais profundidade
que qualquer pintura ou peça teatral
A arte, provavelmente
Não é o melhor veículo para mostrar
O rosto desta Lisboa mulata.
Mas não deixo de reconhecer
Que exerce um papel fundamental
Para contrariar aqueles que continuam a achar
Que os únicos episódios de interesse
Sobre África e africanos
Continuam a ser os safaris e as catástrofes
Que nos chegam através dos media.
África parece que só nos informa sobre as crises
As últimas cheias
As incontáveis vitímas da última guerra civil
O último genocídio,
As últimas sondagens
Sobre o número crescente de casos de HIV
Ou sobre as últimas pessoas que se afogaram
Ou foram presas quando tentavam atravessar
O estreito de gibraltar
Depois do jantar ou nas tardes do fim de semana
Extensos documentários
Sobre as idílicas paisagens do Serengeti
A fabulosa fauna animal
Ou ainda as sumptuosas dunas do Sahara e do Namibe
As maravilhas da natural África na hora do entretenimento
E o pesadelo social africano
Quando é hora da verdade
De uma certa verdade como disse Pep Subiros
É a verdade que desperta o interesse em buscar
Noutras capitais africanas como:
Paris; Londres e Lisboa
Elementos que me ajudem a compreender África:
Seus filhos; seus heróis; seus sonhos;
suas democracias; suas ditaduras; seus medos
suas Zonas J2; Seus Outros Bairros3 e seus Albertos
Cujos os pequenos nadas, cujas banalidades
Ou a generosidade em partilhar
Os seus sentimentos simples me fazem sorrir
Comove-me esta inocência
Que me lembra também que por mais urbano-global
Que sejam as suas aspirações
O compromisso com o rural-local
Transmitido por outras gerações
Continuam quase intacto
A desenraização desta geração, que tanto se debate
Não está assente no facto
De serem de origem africana
Nem naquele velha história
Dos pais transmitirem a ideia de África.
Está antes assente num simples detalhe
São pretos.
Não há nada de errado em ser Afro-Luso
O perigo está em não ter consciência disso
Os brothers americanos a dada altura
Autodenominaram-se Afro-Americanos
Porque será?
Porque será que Malcom X defendia
Fervorosamente o regresso dos negros
Para o continente mãe
Mas depois de uma viagem a África
Afirmou que América era a sua casa
Não é a cor da pele nem a saudade
Que nos faz pertencermos a determinado lugar
Nem as obras de arte têm a obrigação
Ou o dever de desencadear revoluções
Ou a pequena revolução cultural
Que tantos “afronomos”4 anseiam
Interessa-me, acima de tudo
Saber se qualquer obra
Ou objecto de arte contribui ou não
Para a evolução cultural
A evolução não dá espaço
Para a nostalgia
O retorno, o retornar
O voltar ou o relembrar torna tudo mais difícil
O nosso passado foi negro ou branco
Dependendo da vista e do ponto
Só a evolução chega a ser verdadeiramente
Multicultural
Multiculturalismo este que observo
Em certos jovens com quem cruzo
Jovens que se parecem com Alberto
Alguns são pulas5 até a alma
Nasceram na Alfredo da Costa6
Vivem em bairros como os Olivais
Falam o criolo de Santiago
Dançam kizomba7 e kuduro8
Mais apaixonadamente que muitos pretos da banda9
Sabem rimar e sem muita pretensões
E se calhar, sem noção disso
Estão a rescrever a história censurada
Deste país que se confunde com África
Desde que o Algarve é Algarve
(1) Afro-tuga = Afro Portugues
(2) Zona J = Complexo de edificios no Bairro de Chelas, Lisboa. = Título de um filme
portugues sobre jovens de ascendência africada que habitavam o Bairro de Chelas.
(3) Outros Bairros = Título de um documentario portugues sobre jovens de
ascendência Africana que habitam nos suburbios de Lisboa.
(4) Afronomos = Amantes da Africanidade
(5) Pulas = Caucasianos
(6) Alfredo da Costa = Maternidade Alfredo da Costa no centro de Lisboa
(7) Kizomba = Dança de Salão dos bailes africanos
(8) Kuduro = Dança urbana criada por jovens angolanos nas ruas de Angola
(9) Banda = Giria utilisadas para demoniar Angola.