Rui Cóias
[Andaste de um ao outro lado da terra na vida interminável]
[Andaste de um ao outro lado da terra na vida interminável]
Andaste de um ao outro lado da terra na vida interminável,
tiveste degredos, piedosos cíumes, a fé desvanescida,
amantes paradas na lavoura, roubando-te o rosto amado.
Viste vestígios de que foste a sombra de ninguém,
olhos sem pudor, do reflexo dos ferros no tropel,
franjas do domínio pueril de Alexandre, olhando Gaugamela.
Partiste num porto de transição para o Levante,
com vazios para trás, todo o tempo a poder ver,
e ao primeiro Inverno, pelos cardeais das suas cinzas,
começaste a travessia que não termina, a história que não acaba.
Soubeste porque se vislumbra, em lágrimas, o pinheiro da juventude,
o nome quebrado num turvo ar medido sem corda,
e a maresia do vento de feição no segundo Inverno.
Em troca perseguiste o que rege o homem fortuito,
segredando em palácios de mármore que são apenas pedras,
dos fracassos a que jamais alguém ajoelhara.
Ao terceiro Inverno descobriste o hemisfério, e ao quarto,
sem ideia de guerra ou ordem para mudar o reino,
escolheste adornar os aquedutos sob o manto dos regatos,
sentado, na brisa no tanque, ao febril entardecer.
De quem te aproximaste, no seu trajecto interminado,
sem lugar senão o que esfria na mente recortada,
naquilo que se ramifica, tornando-se na própria teia,
contigo propagou o dever de passar em toda a parte.
E quando veio o quinto Inverno, e o sexto, suturaste o sangue,
trouxeste a pele à curva dos rios, acolheste o que de resto se desmorona,
e pudeste enfim, na crença dos migradores furtivos, entender que
tudo se perde noutro lugar ainda, e após esse ainda noutro
e que ao fim de cada manhã noutra manhã
tudo é incerto, tão conforme o dente-de-leão no meio de searas,
tão emudecido como a veia exausta dos não sepultados.
Na mansarda onde vagueia o dia e a noite
o vento responde, cortando o centeio e o calcário, e a vela
que brilha na luz de estrelas veladas, já desaparecidas,
pisadas, mudas, engolidas aos pés do sétimo Inverno,
arpoa o coração e a ruína; os meridianos despem-se, voam
em vinte e cinco anos que há pouco se beijavam, e seja dito ou não dito
o prazer que inflige um pico de tormentos
por lábios que só as mulheres conhecem
no moinho das águas da morte em Varanasi,
sacode a chama de quanto vale, dura e canta
o princípio e o fim do teu poder na terra.