Odile Kennel
deutsch
RECOLHER I
Um beijo de súbito e ao fundo uma régua inteira de rio
Foi o dia em que perdi tudo quase tudo as chaves do carro
até o chão Não teve importância alguma porque
sequer me lembrava até onde estacionara o carro
Acontece-me muito de manhã esquecer-me do lugar
onde à noite estacionei a realidade
O melhor por vezes é sermos mesmo despojados de tudo
quanto menos tivermos menos perdemos
por exemplo o tempo Quanto menos juntarmos
menos desarrumamos por exemplo a vida
sem quinquilharia barata ao fundo da carteira
mais facilmente as coisas nos sobrevêm à mão
por exemplo a solidão
Até esse beijo súbito preso na moldura de um rio inútil
se terá perdido no meio das bugigangas todas que juntámos,
os filhos os livros os brincos (tantos brincos se perdem numa vida)
as ferramentas as casas a papelada a mobília as
roupas as tralhas e as palavras as memórias os bibelots
que já eram dos avós: os velhos guardam sempre tanto lixo
tantos fios eléctricos embaraçados tanta meia sem par
tanto amor desirmanado por aí
por onde?
Nesta confusão de tudo recolhermos em desalinho
como encontrar, então, de súbito
o beijo ao precisarmos dele
ou a moldura
ou mesmo o Tejo imóvel lá por dentro?
Aus: As orelhas de KARENIN
Lisboa: Abysmo, 2019
Audioproduktion: Casa Fernando Pessoa
SAMMELN I
Ein unerwarteter Kuss und im Hintergrund ein ganzes Flusslineal
Es war der Tag, an dem ich alles verlor fast alles die Autoschlüssel
und sogar den Boden unter den Füßen Nicht schlimm
ich wusste eh nicht mehr, wo ich das Auto geparkt hatte
Das geht mir oft so, dass ich morgens nicht mehr weiß
wo ich am Vorabend die Wirklichkeit geparkt habe
Manchmal ist es besser, alles los zu sein
je weniger wir haben, desto weniger verlieren wir
zum Beispiel Zeit Je weniger wir ansammeln
desto weniger kommt durcheinander zum Beispiel das Leben
haben wir weniger wertlosen Krams in der Handtasche
sind die Dinge leichter zur Hand
zum Beispiel Einsamkeit
Sogar dieser unerwartete Kuss, gefangen im Rahmen eines unnützen Flusses
hat sich wohl verloren im angesammelten Krempel
Kinder Bücher Ohrringe (so viele verlorene Ohrringe im Leben)
Werkzeug Häuser Papierkram Möbel
Klamotten Plunder und Worte Erinnerungen Nippes
noch von den Großeltern: die Alten behalten immer so viel Müll
so viel Kabelage so viele einzelne Socken
so viel entzweite Liebe überall
überall wo?
Wie also im Durcheinander
unserer Sammelwut unerwartet
den Kuss finden, wenn wir ihn brauchen
oder den Rahmen
oder gar den Tejo, der da im Innern ruht?