Regina Guimarães
DEVER GERAL DE RECOLHIMENTO
DEVER GERAL DE RECOLHIMENTO
Na cozinha do rouxinol
toda a música é agora incestuosa
e até o metal dos velhos tachos
se queixa da facilidade
com que ela desenha atalhos entre realidades
A cozinha tornara-se o quarto de brinquedos
com o seu tabuleiro de xadrez sem casas brancas
com a sua pantera fixada ao comprimento das pestanas
com as suas buzinas a anunciar a sessão de cinema
nem falante nem visual
Era na cozinha que se aperfeiçoavam os excrementos
que se colavam asas às costas dos anjos domésticos
que se alimentava a esperança de matar com um simples insulto
que por fim se admitia a confusão entre ilícito e ilegível
que pelo cheiro se reconhecia a voz inicial da culpa
Pela frincha da porta deixada entreaberta
pelas novíssimas divindades do lar
vejo que na cozinha das insónias
se recebe o segundo cérebro como um rei
em redor de caldos quentes e poções a fumegar
confeccionados por crianças sabedoras de seus herbários
hesitando entre veneno e ambrósia, peçonhas e manjares
E pelo postigo
atrás do qual o coração treme e teme
imagino a cozinha comum reconstruindo-se
graças à argila quente das palavras estranhas
que incorporam as crias e os crimes
como se fossem sinónimos da grande cama onde se nasce
sempre prematuramente
mas sempre