Rita Taborda Duarte
RECOLHER I
RECOLHER I
Um beijo de súbito e ao fundo uma régua inteira de rio
Foi o dia em que perdi tudo quase tudo as chaves do carro
até o chão Não teve importância alguma porque
sequer me lembrava até onde estacionara o carro
Acontece-me muito de manhã esquecer-me do lugar
onde à noite estacionei a realidade
O melhor por vezes é sermos mesmo despojados de tudo
quanto menos tivermos menos perdemos
por exemplo o tempo Quanto menos juntarmos
menos desarrumamos por exemplo a vida
sem quinquilharia barata ao fundo da carteira
mais facilmente as coisas nos sobrevêm à mão
por exemplo a solidão
Até esse beijo súbito preso na moldura de um rio inútil
se terá perdido no meio das bugigangas todas que juntámos,
os filhos os livros os brincos (tantos brincos se perdem numa vida)
as ferramentas as casas a papelada a mobília as
roupas as tralhas e as palavras as memórias os bibelots
que já eram dos avós: os velhos guardam sempre tanto lixo
tantos fios eléctricos embaraçados tanta meia sem par
tanto amor desirmanado por aí
por onde?
Nesta confusão de tudo recolhermos em desalinho
como encontrar, então, de súbito
o beijo ao precisarmos dele
ou a moldura
ou mesmo o Tejo imóvel lá por dentro?