Rita Taborda Duarte
RECOLHER 3
RECOLHER 3
à avó Berta
Eu já fui muito pequena e nesses tempos
entre mim e o mundo havia o gradil
da varanda da minha avó.
Não foi fácil, para o ferreiro,
rendilhar a lume o ferro frio que me amparava a testa
e as duas mães espalmadas cheias dedos;
fê-la nua a essa grade áspera de espiar
a vida
Na parede do mercado, ao forno do tijolo,
o gigante, de calcário grasso, só cabeça, quase todo,
olhava-me com troça e gozo
e sorria-me com o riso bojudo de uma nau
aberta ao rio. Os corvos bicavam-lhe os olhos de pedra
e uns tufos de penas mal talhadas faziam de
melena cacheada atrás da orelha. Entre mim
e a cabeça do gigante não havia medo:
só o gradeamento verde da varanda.
Era um dó fundo que doía
ver aquele gigante soberbo
– quase só cabeça e
uma boca inteira de naufrágio –
envergar um chapéu ridículo,
de gávea à banda.
Hoje, sou mais pequena
do que quando era pequena
e o mundo além gradil
é ainda mais pequeno
do que o tamanho da altura
do que então eu via
e
cabe, agora, todo inteiro
no sorriso de uma Lisboa
escancarada
defronte da varanda
da casa que me era a minha avó.